Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo,

igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo...

Relatório: Intenção

 

Etapas da A/R/COGRAFIA: Intenção

 

"«A arte é filha da liberdade». Aparentemente, ele [o artista] pode criar tudo - é onipotente. No entanto, a liberdade absoluta é desvinculada de uma intenção e, por consequência, não leva à ação. A existência de um propósito, mesmo que de caráter geral e vago, é o primeiro orientador dessa liberdade ilimitada. Criar livremente não significa poder fazer qualquer coisa, a qualquer momento, em quaisquer circunstâncias e de qualquer maneira. As delimitações são como as margens de um rio pelo qual o indivíduo se aventura no desconhecido. Vemos o ser livre como uma condição seletiva, sempre vinculada a uma intencionalidade presente, embora talvez inconsciente, e a valores individuais e sociais de um tempo”. (Salles, 2004, pp. 63-64)

 

Poderemos dizer que o que define um artefacto final é a intenção colocada pelo artista na sua criação, uma vez que será ela o elemento condutor do processo criativo, no sentido de proporcionar um desenvolvimento orientado, com vista a atingir um propósito pré-definido. Para Salles (2004), a existência de um propósito é um elemento orientador na visão do artista, na forma como este pretende expressar-se e comunicar com o público. Segundo Duchamp (1957), citado por Veiga (2020), no decorrer do processo criativo, o artista passa por muitos momentos de reflexão, pesquisa, interpretação e experimentação, “esforços, dores, satisfações, recusas, decisões”, sendo estes momentos os elementos diferenciadores entre a definição da sua intenção até à criação do artefacto – a realização.

“A conceptualização é atingida através de uma análise aprofundada, conduzindo à subsequente execução, por meio de refinamentos iterativos, e culminando na exibição pública e comunicação.” Veiga (2020)

Ainda segundo Veiga (2020), na a/r/cografia, a intenção está diretamente relacionada com a questão de investigação ou artística. Representa a questão e o motivo definidos pelo artista e constitui a linha orientadora para a definição da mensagem a comunicar, do propósito e do objetivo. A intenção também surge no seguimento das etapas da inspiração e do gatilho, onde já começam a formar-se algumas ideias e, principalmente, questões:

"E se ele voltasse? e se ... conseguisse produzir um projeto de arte generativa que captasse as suas múltiplas personalidades, em que, utilizando poemas já existentes, fossem gerados ciberpoemas, através das palavras já deixadas pelo próprio Pessoa? E se... será que voltaria "a viver" eternamente, nos seus infinitos?"

No seguimento destas questões, surgem outras, como: O quê mais concretamente? Como? Para quê? Porquê? – ou, de forma mais precisa: qual o propósito?

§  Expansão de formas artísticas existentes?

§  Entretenimento e interação?

§  Reflexão?

§  Intervenção social e política?

Com os estudos e leituras e pesquisas, efetuados até ao momento, a arte generativa representa para mim um conjunto de processos, abordagens e/ou ferramentas com as quais será possível criar obras de arte únicas e singulares, recorrendo a ferramentas digitais. Com a particularidade de adicionar a programação ao estilo artístico e criativo, oferece a possibilidade de unificar dois mundos que antes pareciam distintos: a informática e a arte. Com as suas inúmeras aplicações, quer ao nível da imagem, vídeo, música e literatura, apresenta-se como uma abordagem muito adequada às minhas ideias iniciais para a criação do meu Projeto Media Arte Digital.

E explorando um pouco esta ideia que iniciei nos pontos de inspiração no meu DDB, enquadraria a minha intenção na expansão de formas artísticas existentes, tendo em vista os seguintes propósitos:

- Reutilização de arte já existente (poemas e palavras do autor) para a criação de nova arte (inserida em ciberpoesia, poesia generativa) – novos textos;

- Expansão da multiplicidade de personalidades pessoanas através de arte generativa, não só ao nível da recriação de texto, mas também de pseudonímia;

- Transmitir ao público um “espaço sensorial” no sentido figurativo que (se imagina?) que passaria na mente do poeta (Fernando Pessoa, ou, mais concretamente, Álvaro de Campos) quando imergido no seu processo de criação literária – indo de encontro aos infinitos (dentro dele mesmo);

- Imortalizar o poeta, no sentido de o renascer e trazer a sua genialidade à contemporaneidade artística, sendo que, a arte generativa poderá “dar continuidade” à sua obra literária, através da geração de poemas a partir de poemas existentes, caracterizados pela expressão artística daquele que era o mais futurista dos heterónimos: Álvaro de Campos;

“Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me «compreenda», os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu terei já morrido há muito. Serei compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem morreu a só desafeição que houve, quando vivo.” Bernardo Soares, in Livro do Desassossego

“(…) Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. (…)” Pessoa (1935). In Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro

Nesse sentido, foram adicionadas no DDB algumas entradas na página “Intenção”, relacionadas com esses propósitos e cujo objetivo será explorar, pesquisar, desenvolver mais conhecimentos e refinar os propósitos e a forma como os mesmos se poderão realizar. Para tal, foram considerados alguns vetores de desenvolvimento, tendo em conta os seguintes aspetos e questões:

narrativa/desenvolvimento

interação/evolução

experiência/fruição

 

O artefacto irá contar uma história?

Não se procura contar uma história propriamente dita, mas pretende-se a materialização de um conceito, que vai ao encontro dos ideais da narrativa pessoana. Nos textos do poeta, a eternidade, a perenidade da sua escrita, a evolução dos seus textos após a sua morte, são temas muito versados e altamente importantes para o poeta (assinalados na escrita de vários heterónimos diferentes), inclusive, na sua carta onde esclarece a génese dos heterónimos, o Álvaro de Campos surge como o poeta que "sente um impulso para escrever", imparável e eterno.

O artefacto irá permitir viver parte de uma narrativa?

"Viver" parte de uma narrativa, depende, será algo subjetivo. Se por "viver", se entender experienciar e absorver sensações e evoluções da arte literária integrada em média-arte digital, na sua construção e evolução em tempo real, então diria que sim. Se for no sentido da narrativa, o público sentir-se enquanto "personagem" que faz parte da narrativa, nesse sentido não se enquadra nas reflexões efetuadas até ao momento.

Conduzirá o público a uma conclusão?

Esse sim, será um dos objetivos principais. O renascimento do poeta (ou a sua continuidade artística) na era digital, a possibilidade de contemplação da sua evolução na atualidade, uma extensão dos pressupostos deixados pela era modernista/futurista - legado que nos foi deixado em experiências poéticas de Álvaro de Campos (e pelo Manifesto Futurista de Marinetti).

Na relação do artefacto com o público, existem já algumas anotações, embora ainda não esteja totalmente definida a forma como se irá estabelecer essa relação:

Proporcionar experiências visuais/sensoriais, apoiadas na "surpresa", novidade a cada poema gerado;

Envolvência com música e conteúdo visual (generativos);

Estimular sensações e emoções;

Contemplação / estimular ou despertar paixão pela poesia Pessoana;

Choque, na desconstrução de poemas que são ícones do poeta, e a partir deles a geração de novos: a utilização de texto original é uma forma que captar e manter a essência e autenticidade do poeta;

Interiorização / compreensão / identificação /expressão;

Ou será mais do tipo atmosférico/ambiental, apoiando-se em sensações?

Tendo em conta o descrito no ponto anterior, neste momento inclina-se mais para o tipo atmosférico/ambiental, apoiando-se em sensações e emoções, permitindo a contemplação ao mesmo tempo que se procura proporcionar uma experiência diferenciada no contacto com a poesia pessoana.

E em qualquer dos casos, como irá ser feita a comunicação desses aspetos?

Recorrendo conteúdos visuais e sonoros para proporcionar experiências baseadas em emoções, sensações e contemplação.

De que forma existirá interação entre o público e o artefacto?

Relativamente à relação e à forma com que o artefacto poderá proporcionar interação com o público, o que lhe poderá atribuir um acrescento não só de valor, mas também consolidar o seu propósito, ainda não está definida a forma ideal para aplicar técnicas de interação. Duas ideias, contudo, estão em aberto:

No momento de contemplação / interação com o artefacto, existir captação do olhar. A geração da escrita, a movimentação do artefacto, poderá acontecer apenas quando despoletado pelo olhar, ao invés de se desenvolver imparavelmente com o programa em execução.

Deteção de olhar, mas com olhos fechados - a escrita não acontece, mas é produzido algum tipo de artefacto sonoro, também de forma generativa, com vista à transmissão da escrita não por palavras, mas através de sons.

O artefacto evolui em função dessa interação ou será imutável, debitando sempre o mesmo conteúdo e proporcionando a mesma experiência?

Pretende-se que o artefacto possa evoluir em função da interação, por exemplo, a geração de novos textos ir de encontro a algo relacionado com o público e à forma como este vai interagir. Não se pretende que seja repetitivo, mas sim imutável, proporcionando a sensação da impulsividade da escrita sem parar e eterna, sem repetição de conteúdo, e mantendo as particularidades da alma das palavras do poeta.

Quais os requisitos para que o público possa fruir de forma cabal da experiência que o vosso artefacto tem como intenção comunicar?

Computador funcional, tela de projeção com boa qualidade de imagem, tecnologia de som com qualidade;

Existe uma componente de performance associada? A performance é executada pelo público ou por alguém da equipa do artista/criador?

Até ao momento não se prevê uma componente de performance.

Existem condições limitativas para que a fruição possa ocorrer? A audiência deve cumprir determinado protocolo para usufruir da obra, ou bastará estar na sua presença para tal?

Não se preveem condições limitativas, embora, se o público em causa tiver conhecimento prévio da escrita pessoana ou paixão pela poesia, poderá usufruir da experiência de uma forma mais pessoal, influenciada pelo seu contexto e nível de conhecimento, e sentirá, provavelmente uma maior envolvência, conseguindo absorver a conclusão de forma mais orientada.

 

A intenção do a/r/cógrafo, conforme refere Veiga (2020) é complexa e como tal constitui-se como uma linha orientadora. Sujeita a muitas questões, processos de investigação, reflexão e interpretação, a intenção apresenta-se como um processo que conduzirá o a/r/cógrafo a um objetivo, à materialização do artefacto e à realização do propósito. Encontram-se no DDB outras entradas, referências externas para pesquisa, inseridas no menu lateral, na secção “Poesia Generativa e Ciberpoesia”. O objetivo desta secção será documentar alguns dos resultados de pesquisa relevantes, conducentes à formulação de respostas. Este processo de investigação criativa é fundamental para atingir a próxima etapa – conceptualização – e deve fundamentar-se em pesquisas e análises, nesta fase mais estruturadas e orientadas, pois é a partir desta etapa que se iniciam processos mais concretos de experimentação e criação.

 

Link para o DDB, página de entradas relativas à Intenção:

https://ddbmsoberano.blogspot.com/p/intencao.html

 

 

Referências

Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, de 13 janeiro de 1935, in Correspondência 1923-1935, Ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999. https://www.casafernandopessoa.pt/pt/fernando-pessoa/textos/heteronimia

Pessoa, F. (2006). Livro do desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Editora Companhia das Letras.

Salles, Cecília A. (2004). Gesto Inacabado: processo de criação artística. 2ª ed, São Paulo: FAPESP – Annablume. ISBN 85-7419-042-X

Veiga, P. A. (2020). O Museu de Tudo em Qualquer Parte: arte e cultura digital - interferir e curar. Coleção Humanitas, Centro de Investigação em Artes e Comunicação. Grácio Editor. https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/11265