Relatório: Intenção
Etapas da A/R/COGRAFIA: Intenção
"«A arte
é filha da liberdade». Aparentemente, ele [o artista] pode criar tudo - é
onipotente. No entanto, a liberdade absoluta é desvinculada de uma intenção e,
por consequência, não leva à ação. A existência de um propósito, mesmo que
de caráter geral e vago, é o primeiro orientador dessa liberdade ilimitada.
Criar livremente não significa poder fazer qualquer coisa, a qualquer momento,
em quaisquer circunstâncias e de qualquer maneira. As delimitações são como as
margens de um rio pelo qual o indivíduo se aventura no desconhecido. Vemos o
ser livre como uma condição seletiva, sempre vinculada a uma intencionalidade
presente, embora talvez inconsciente, e a valores individuais e sociais de um
tempo”. (Salles, 2004, pp. 63-64)
Poderemos dizer que o que define
um artefacto final é a intenção colocada pelo artista na sua criação, uma vez
que será ela o elemento condutor do processo criativo, no sentido de
proporcionar um desenvolvimento orientado, com vista a atingir um propósito pré-definido.
Para Salles (2004), a existência de um propósito é um elemento orientador na
visão do artista, na forma como este pretende expressar-se e comunicar com o
público. Segundo Duchamp (1957), citado por Veiga (2020), no decorrer do
processo criativo, o artista passa por muitos momentos de reflexão, pesquisa,
interpretação e experimentação, “esforços, dores, satisfações, recusas,
decisões”, sendo estes momentos os elementos diferenciadores entre a definição
da sua intenção até à criação do artefacto – a realização.
“A
conceptualização é atingida através de uma análise aprofundada, conduzindo à
subsequente execução, por meio de refinamentos iterativos, e culminando na
exibição pública e comunicação.” Veiga (2020)
Ainda segundo Veiga (2020), na
a/r/cografia, a intenção está diretamente relacionada com a questão de
investigação ou artística. Representa a questão e o motivo definidos pelo
artista e constitui a linha orientadora para a definição da mensagem a
comunicar, do propósito e do objetivo. A intenção também surge no seguimento
das etapas da inspiração e do gatilho, onde já começam a formar-se algumas
ideias e, principalmente, questões:
"E se ele
voltasse? e se ... conseguisse produzir um projeto de arte generativa que
captasse as suas múltiplas personalidades, em que, utilizando poemas já
existentes, fossem gerados ciberpoemas, através das palavras já deixadas pelo
próprio Pessoa? E se... será que voltaria "a viver" eternamente, nos
seus infinitos?"
No seguimento destas questões,
surgem outras, como: O quê mais concretamente? Como? Para quê? Porquê? – ou, de
forma mais precisa: qual o propósito?
§ Expansão
de formas artísticas existentes?
§ Entretenimento
e interação?
§ Reflexão?
§ Intervenção
social e política?
Com os estudos e leituras e pesquisas,
efetuados até ao momento, a arte generativa representa para mim um conjunto de
processos, abordagens e/ou ferramentas com as quais será possível criar obras
de arte únicas e singulares, recorrendo a ferramentas digitais. Com a
particularidade de adicionar a programação ao estilo artístico e criativo,
oferece a possibilidade de unificar dois mundos que antes pareciam distintos: a
informática e a arte. Com as suas inúmeras aplicações, quer ao nível da imagem,
vídeo, música e literatura, apresenta-se como uma abordagem muito adequada às
minhas ideias iniciais para a criação do meu Projeto Media Arte Digital.
E explorando um pouco esta ideia
que iniciei nos pontos de inspiração no meu DDB, enquadraria a minha intenção na
expansão de formas artísticas existentes, tendo em vista os seguintes propósitos:
- Reutilização de arte já
existente (poemas e palavras do autor) para a criação de nova arte (inserida em
ciberpoesia, poesia generativa) – novos textos;
- Expansão da multiplicidade de
personalidades pessoanas através de arte generativa, não só ao nível da
recriação de texto, mas também de pseudonímia;
- Transmitir ao público um
“espaço sensorial” no sentido figurativo que (se imagina?) que passaria na
mente do poeta (Fernando Pessoa, ou, mais concretamente, Álvaro de Campos)
quando imergido no seu processo de criação literária – indo de encontro aos
infinitos (dentro dele mesmo);
- Imortalizar o poeta, no sentido
de o renascer e trazer a sua genialidade à contemporaneidade artística, sendo
que, a arte generativa poderá “dar continuidade” à sua obra literária, através
da geração de poemas a partir de poemas existentes, caracterizados pela
expressão artística daquele que era o mais futurista dos heterónimos: Álvaro de
Campos;
“Penso às
vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não
pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente
que me «compreenda», os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser
amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu terei já morrido há muito. Serei
compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem morreu a só
desafeição que houve, quando vivo.” Bernardo Soares, in Livro do
Desassossego
“(…) Como
escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem
saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma
deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando
sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo
Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece
sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as
qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É
um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente
da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a
afectividade. (…)” Pessoa (1935). In Carta de Fernando Pessoa a Adolfo
Casais Monteiro
Nesse sentido, foram adicionadas
no DDB algumas entradas na página “Intenção”, relacionadas com esses propósitos
e cujo objetivo será explorar, pesquisar, desenvolver mais conhecimentos e
refinar os propósitos e a forma como os mesmos se poderão realizar. Para tal,
foram considerados alguns vetores de desenvolvimento, tendo em conta os
seguintes aspetos e questões:
narrativa/desenvolvimento
interação/evolução
experiência/fruição
O artefacto irá contar uma
história?
Não se procura contar uma
história propriamente dita, mas pretende-se a materialização de um conceito,
que vai ao encontro dos ideais da narrativa pessoana. Nos textos do poeta, a
eternidade, a perenidade da sua escrita, a evolução dos seus textos após a sua
morte, são temas muito versados e altamente importantes para o poeta
(assinalados na escrita de vários heterónimos diferentes), inclusive, na sua
carta onde esclarece a génese dos heterónimos, o Álvaro de Campos surge como o
poeta que "sente um impulso para escrever", imparável e eterno.
O artefacto irá permitir viver
parte de uma narrativa?
"Viver" parte de uma
narrativa, depende, será algo subjetivo. Se por "viver", se entender
experienciar e absorver sensações e evoluções da arte literária integrada em
média-arte digital, na sua construção e evolução em tempo real, então diria que
sim. Se for no sentido da narrativa, o público sentir-se enquanto "personagem"
que faz parte da narrativa, nesse sentido não se enquadra nas reflexões
efetuadas até ao momento.
Conduzirá o público a uma
conclusão?
Esse sim, será um dos objetivos
principais. O renascimento do poeta (ou a sua continuidade artística) na era
digital, a possibilidade de contemplação da sua evolução na atualidade, uma
extensão dos pressupostos deixados pela era modernista/futurista - legado que
nos foi deixado em experiências poéticas de Álvaro de Campos (e pelo Manifesto
Futurista de Marinetti).
Na relação do artefacto com o
público, existem já algumas anotações, embora ainda não esteja totalmente
definida a forma como se irá estabelecer essa relação:
Proporcionar experiências
visuais/sensoriais, apoiadas na "surpresa", novidade a cada poema
gerado;
Envolvência com música e conteúdo
visual (generativos);
Estimular sensações e emoções;
Contemplação / estimular ou
despertar paixão pela poesia Pessoana;
Choque, na desconstrução de
poemas que são ícones do poeta, e a partir deles a geração de novos: a
utilização de texto original é uma forma que captar e manter a essência e
autenticidade do poeta;
Interiorização / compreensão /
identificação /expressão;
Ou será mais do tipo
atmosférico/ambiental, apoiando-se em sensações?
Tendo em conta o descrito no
ponto anterior, neste momento inclina-se mais para o tipo
atmosférico/ambiental, apoiando-se em sensações e emoções, permitindo a contemplação
ao mesmo tempo que se procura proporcionar uma experiência diferenciada no
contacto com a poesia pessoana.
E em qualquer dos casos, como
irá ser feita a comunicação desses aspetos?
Recorrendo conteúdos visuais e
sonoros para proporcionar experiências baseadas em emoções, sensações e
contemplação.
De que forma existirá
interação entre o público e o artefacto?
Relativamente à relação e à forma
com que o artefacto poderá proporcionar interação com o público, o que lhe
poderá atribuir um acrescento não só de valor, mas também consolidar o seu
propósito, ainda não está definida a forma ideal para aplicar técnicas de
interação. Duas ideias, contudo, estão em aberto:
No momento de contemplação /
interação com o artefacto, existir captação do olhar. A geração da escrita, a
movimentação do artefacto, poderá acontecer apenas quando despoletado pelo
olhar, ao invés de se desenvolver imparavelmente com o programa em execução.
Deteção de olhar, mas com olhos
fechados - a escrita não acontece, mas é produzido algum tipo de artefacto
sonoro, também de forma generativa, com vista à transmissão da escrita não por palavras,
mas através de sons.
O artefacto evolui em função
dessa interação ou será imutável, debitando sempre o mesmo conteúdo e
proporcionando a mesma experiência?
Pretende-se que o artefacto possa
evoluir em função da interação, por exemplo, a geração de novos textos ir de
encontro a algo relacionado com o público e à forma como este vai interagir.
Não se pretende que seja repetitivo, mas sim imutável, proporcionando a
sensação da impulsividade da escrita sem parar e eterna, sem repetição de
conteúdo, e mantendo as particularidades da alma das palavras do poeta.
Quais os requisitos para que o
público possa fruir de forma cabal da experiência que o vosso artefacto tem
como intenção comunicar?
Computador funcional, tela de
projeção com boa qualidade de imagem, tecnologia de som com qualidade;
Existe uma componente de
performance associada? A performance é executada pelo público ou por alguém da
equipa do artista/criador?
Até ao momento não se prevê uma
componente de performance.
Existem condições limitativas
para que a fruição possa ocorrer? A audiência deve cumprir determinado
protocolo para usufruir da obra, ou bastará estar na sua presença para tal?
Não se preveem condições
limitativas, embora, se o público em causa tiver conhecimento prévio da escrita
pessoana ou paixão pela poesia, poderá usufruir da experiência de uma forma
mais pessoal, influenciada pelo seu contexto e nível de conhecimento, e
sentirá, provavelmente uma maior envolvência, conseguindo absorver a conclusão
de forma mais orientada.
A intenção do a/r/cógrafo,
conforme refere Veiga (2020) é complexa e como tal constitui-se como uma linha
orientadora. Sujeita a muitas questões, processos de investigação, reflexão e
interpretação, a intenção apresenta-se como um processo que conduzirá o a/r/cógrafo
a um objetivo, à materialização do artefacto e à realização do propósito.
Encontram-se no DDB outras entradas, referências externas para pesquisa,
inseridas no menu lateral, na secção “Poesia Generativa e Ciberpoesia”. O
objetivo desta secção será documentar alguns dos resultados de pesquisa relevantes,
conducentes à formulação de respostas. Este processo de investigação criativa é
fundamental para atingir a próxima etapa – conceptualização – e deve
fundamentar-se em pesquisas e análises, nesta fase mais estruturadas e
orientadas, pois é a partir desta etapa que se iniciam processos mais concretos
de experimentação e criação.
Link para o DDB, página de
entradas relativas à Intenção:
https://ddbmsoberano.blogspot.com/p/intencao.html
Referências
Carta de Fernando Pessoa a Adolfo
Casais Monteiro, de 13 janeiro de 1935, in Correspondência 1923-1935, Ed.
Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999. https://www.casafernandopessoa.pt/pt/fernando-pessoa/textos/heteronimia
Pessoa, F. (2006). Livro do
desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade
de Lisboa. Editora Companhia das Letras.
Salles, Cecília A. (2004). Gesto Inacabado: processo de
criação artística. 2ª ed, São Paulo: FAPESP – Annablume. ISBN 85-7419-042-X
Veiga, P. A. (2020). O Museu de
Tudo em Qualquer Parte: arte e cultura digital - interferir e curar. Coleção
Humanitas, Centro de Investigação em Artes e Comunicação. Grácio Editor. https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/11265